Branco sai, Preto fica.

Algo acontece

Sofrimento

Como positivar o sofrimento? Talvez esse seja o problema central para o filme “Branco sai, Preto fica” do Coletivo de Cinema de Ceilândia. Problema que impulsiona a obra, sua forma e seu conteúdo. Afinal, como tratar de um evento que deixou marcas materiais e imateriais nas pessoas negras de Ceilândia? Tem-se um movimento duplo no filme: de um lado, não cair na vitimização, que acaba por fixar as pessoas em um papel passivo; de outro, não se restringir à denúncia, que como par da vitimização acaba por se tornar uma homenagem aos agressores, nesse caso a polícia.

Dizer sim ao sofrimento, afirmá-lo enquanto sofrimento, é um sinal de uma vida potente, de criações, cinematográficas por exemplo, potentes, como dizia um filósofo que morou bem longe da Ceilândia. Esse mesmo camarada que também dizia: “se eu não transformar essa merda em ouro, eu estou fudido!”. A dor e mesmo a raiva decorrente são combustíveis para positivar o sofrimento e escapar da tristeza, da resignação e todas essas merdas que nos põem ainda mais pra baixo.

Alegria

E o contrário também é verdadeiro. É a alegria o afeto que se manifesta nesta resistência. O pessoal do Coletivo de Cinema de Ceilândia não cansa de repetir o quanto foi fundamental, no processo de criação do filme, rir alto, se divertir, “zoar com a cara deles”. O final do filme, a bela vingança, é em ato este procedimento. Uma bomba de traços minoritários, colocadas numa máquina, são lançadas, serão lançados, foram lançados contra todos os Centros, contra o rosto branco da cidade, contra a miséria que vive o povo, contra um cinema vergonhoso com seus esteriótipos reacionários. Por isso, não se trata de um final feliz, e sim de um final alegre. Em tudo o que há de sofrido, de dor, de raiva, e mesmo de ressentimento, de rancor, é transmutado, transformados em alegria. É uma mensagem alegre, e que só pode ser intensamente alegre por conta da grande dose de sofrimento que ela carrega e afirma. Não é a alegria do fascismo de Tropa de Elite, não é a alegria das comédias burguesas da globofilmes feitas para minimizar o tédio e a depressão da classe média. É a alegria da criação.

Criação

Sobre nossa história fabulamos nós mesmos”. Que se escreva e que se diga com todas as palavras. Não se trata de ver o lado bom das coisas, nem de otimismo e ingenuidade, mas de criação. Tentaram destruir um território existencial, onde pessoas negras, pobres e periféricas dançavam, cantavam, experimentavam, criavam, ou seja, viviam, então, que se crie mais e mais, é tudo nosso.

Pois, é fato que, de uma certa maneira, as “elites”, o “status quo”, isto é, as forças dominantes, no cinema e fora dele, suportam em algum grau quando as minorias mostram “suas desgraças”. Às vezes desejam ver estas desgraças. O que é insuportável é quando estas minorias invadem barbaramente ou sutilmente os locais de domínio destas forças dominantes. Ou ainda: que o povo da periferia faça sua música “regional”, que eles contem sua “cultura exótica”, que eles dancem de uma maneira estranha, que eles cultuem deuses “esquisitos”, ou seja, que eles permaneçam em suas particularidades, tudo bem. Tolera-se (às vezes nem isso). Agora, por favor, eles clamam, não toquem na maneira correta de falar, não pertubem a religiosidade certa, não mudem o modo verdadeiro de fazer política, não mudem esta música sacralizada e, é claro, não façam com que os elementos periféricos e negros inventem um outro Cinema, uma outra Política, um outro modo de existir. Em uma palavra, eles dizem: não criem! E ainda podem, sentindo que não dá mais para segurar, desvitalizar, tentar transformar em mercadoria, dizer que é moda, e fingir conceder um status mais importante, digno, ao lado de suas produções dominantes. Seria esta a pior das capturas? Pensamos que, talvez, o fato de uma coisa ser capturada não quer dizer que ela seja capturável. Já entrou, explodiu o cano, vai fazer estrago… As forças dominantes não são donas dos fluxos de tudo o que acontece. Elas apenas pensam que são.

Documentário-ficção

O filme é um acontecimento por que experimenta fazer no cinema, aquilo que já se faz nas periferias, favelas e ruas. Não se trata de “documentar” o que acontece, mas de fazer o cinema funcionar como uma periferia, uma favela, como a rua. Talvez aqui esteja o núcleo do cinema de documentário: não documentar algo; sim funcionar como algo. Na rua não existem dúvidas de que a polícia é racista, violenta, assassina; muito já se viveu, já se falou e já se denunciou, tem-se que saber o que fazer com isso, criar estratégias de vida. Então, que o grito venha de alguém do futuro, que seja tipo um blade runner do gueto que grite olhando nos olhos e atirando: racista de merda – Pou! Pou!, como o faz brilhantemente o personagem de Dilmar Durães.

Os melhores documentários são aqueles que nos fazem ver a ficção da realidade. As melhores ficções são aquelas que nos dão a realidade sem sociologia ou estatística. É como um pendulo incansável que transita entre a ficção da realidade e a realidade da ficção que o filme “Branco sai e preto fica” se presentifica, se faz. Ele não atinge nossa consciência ou nossas emoções. É direto no sistema nervoso. Pois a ficção da realidade não é apenas mostrar – e isso é também importante – o quão fabricada e construída é esta história de opressão e sofrimento. Mas também perceber sua fragilidade, suas fraquezas, sua vulnerabilidade. E a realidade da ficção não é a fantasia de algo possível. É o próprio possível, aqui e agora, que nos faz criar e resistir. Inventar outra coisa. Tentar ao menos! Um cinema que é do início ao fim política, pois a política é o terreno da produção de existência.

Acontecimento

O encontro entre a ficção da realidade e a realidade da ficção produz um acontecimento. O filme é um acontecimento. Um acontecimento é aquilo que faz com que as coisas não possam mais ser vistas e feitas do mesmo jeito. Aquele cinema “bem intencionado” do tipo: “vocês nos dão a vida difícil de vocês e a gente transforma em arte; em troca denunciamos o que acontece”; não pode ser visto da mesma forma. Denunciam-se os Capitães Nascimento, mas no fim, “sem querer”, eles se tornam heróis. (Nada melhor do que a sabedoria popular para nos ensinar sobre as intenções das “boas intenções”). Uma das qualidades do filme é que não se mutila o conteúdo (vidas negras) para se encaixar na forma usual (cinema branco). Chega de mutilações.

Paradoxalmente, o diretor do filme é branco. Ele diz e repete isso em uma entrevista, e isso é algo que deve ser ressaltado, pois, em um estado de coisas no qual a ideia de mestiçagem brasileira faz acreditar que não existe racismo porque estaríamos todos misturados, é importante afirmar que estamos juntos, mas não misturados. Importante porque faz compreender que mesmo na periferia, na favela, existe uma linha traçada sobre a qual se pode ordenar: “branco sai, preto fica”.

Nacionalitário

Quanta perversidade e cinismo está presente na teoria da mestiçagem e no neonacionalismo que brota por aí. A nação Brasil se constrói sufocando as pessoas negras e periféricas, apagando suas singularidade em uma identidade nacional cujo branco bem nascido é o modelo, o privilegiado, e quando estas pessoas criam, suas criações são enfeites para caracterizar a identidade nacional. Não vai tardar para alguns encontrarem em “branco sai, preto fica” um filme genuínamente brasileiro, como o personagem de Chokito que “dá um jeitinho”, vai fazendo gambiarra, catando pernas mecânicas no ferro velho e etc… Clichês da nação. Não vai tardar para alguns dizerem que se trata de cinema Brasileiro. Os cineastas norte-americanos e europeus fazem Cinema, mas aqui, faz-se cinema brasileiro. Faz-se Cinema também aqui. Aqui significa: apesar do Brasil, a partir de uma geografia e de um território que não são nacionais, mas nacionalitários, como dizia um companheiro.

Nacionalitário são as singularidades abafadas e oprimidas pelo Estado-nação, pela subjetividade uniformizada da modernidade capitalista. Nacionalitário são as singularidades subsumidas na identidade da nação, muitas das vezes em guerra contra esta nação e contra esta uniformização. E que se afirmam e se constroem além das sínteses nacionais. A força política de toda Identidade, com I maiúsculo, é a de apagar as assimetrias e as relações de força que não param de acontecer nesta identidade. A identidade mestiça do brasileiro esconde estas relações entre brancos, negros e indíos, por exemplo, as assimetrias, as violências, as opressões, e todo processo forçado (de ontem e que se atualiza incessantemente hoje) para fazê-los caber na incabível identidade Brasil, na sua branquitude, normalidade… Estamos juntos e não misturados. E é possível estarmos aliados?

Perguntas que gostaríamos de fazer ao CEICINE

1- “Aqui é bom, mesmo sendo ruim, aqui é bom” (Dj Jamaika sobre Ceilândia – Rap, o canto da ceilândia). Como a contradição pode ser produtiva e positiva?

2- Gostamos muito de uma frase pronunciada pelo personagem de Dilmar Durães logo no início do filme Dias de Greve: “Conjuntura é seu rabo, zé”. Gostamos de pensar que o cinema pode ser uma maneira de ir contra a conjuntura, sempre uma merda. Ir contra e mostrar que podemos fazer outra coisa, mais alegre, que envolve uma resistência. Sentimos nos seus filmes, e em outros que gostamos, que o cinema nos mostra algo que conjuntura faz questão de abafar. Ele põe na tela, literalmente, para gente ver, sentir, pensar. O que você acha?

3- Ainda a partir dessa frase maravilhosa:“Conjuntura é seu rabo, zé” (Dias de greve), perguntamos: O cinema é sempre político, mas o que essa política produz?

4- Desculpe o tom “técnico” da questão, mas pensamos que não podemos deixar estas palavras e os conceitos mais abstratos serem mais uma das coisas que só a burguesia branca pode utilizar… Uma das coisas que nos chama muita atenção nos filmes é que a periferia não é apenas filmada. Parece que a própria periferia – e o seu modo de vida – impõe certos ritmos ao filme. Como o personagem de Marquim do Tropa (em Branco sai, preto fica) saindo do carro e subindo até sua casa. Um outro tipo de cinema, acreditamos, faria um corte aí. E só retornaria com ele já em sua casa. Mas vocês prosseguem. Ou então em A cidade é uma só?, quando quebra o carro de campanha. Depois, há um espaço da periferia que entra enquanto tal no filme, com Shockito andando no ferro velho, ocupando e fazendo viver um espaço destinado à coisas supostamente quebradas, velhas, que não prestam. Como pensam das pessoas da periferia? Se isso faz sentido, haveriam outros elementos que contaminam com traços propriamente da periferia, de Ceilândia, o que há de mais “cinematográfico”?

5- Da indenização (A cidade é uma só?) à vingança (Branco sai, preto fica)?

6- Por fim, perguntamos: Vocês no CEICINE pensam em como podemos arrancar as salas de cinema dos Shoppings, assistir filmes um pouco menos mainstreams, de outros circuitos, fazer da experiência coletiva de ver um filme algo menos caro, mais popular e mais popularizado?

Sobre veganismo, sacrifícios e racismo

Há muito a ser dito. Não nos estenderemos. E começaremos pelo que já foi dito.

Certa vez, um vegano conseguiu pronunciar o seguinte enunciado: “se eu visse um índio indo pescar, eu certamente me intrometeria e ensinaria que ele estava errado, dizendo que não se pode tratar os animais desta forma”. Em outra ocasião, no decorrer de uma manifestação pelos direitos dos animais, ao passar em frente um trabalhador que vendia cachorro-quente, uma vegana propos que a barraquinha do vendedor de cachorro-quente fosse destruída.

Longe de se tratar de algo individual, estes enunciados expressam com precisão uma força autoritária, reacionária e muitas das vezes fascistas que atravessam demasiadamente os movimentos (individuais e grupais) de vegetarianos e veganos. Mas por que? Uma militante do coletivo anarquista Crimethinc esboçou uma resposta: “Existem muitas pessoas reacionárias e mesmo fascistas que abandonaram outras lutas e se tornaram veganas e vegetarianas e começaram por lutar, apenas e contundentemente, pelos direitos dos animais. A razão disso? Essas pessoas tem poderes absolutos de representação dos seres (os animais) pelos quais, a princípio, elas lutam. Tal fato se dá pela dificuldade que os animais encontram em questionar seus auto-eleitos representantes”.

Ora, nesse exato momento, mais uma vez, retorna um refrão entoado frequentemente por veganos e vegetarianos que reforçam inteiramente o etnocídio do primeiro caso, o elitismo e o espírito de playboy do segundo caso e as razões políticas reacionárias e fascistas sabiamente explicitadas neste terceiro caso: a atual campanha de boicote, perseguição e destruição das religiões de matriz africana através da condenação e criminalização, especificamente, das práticas de sacrifício animal.

Nesse último caso, os etnocídios, o elitismo e o espírito de playboy bem como as bases políticas reacionárias se intercalam e se revezam com uma poderosa ação racista e classista. Trata-se de fazer coro à uma destruição e perseguição sistemática, de tempos, às religiões de matriz africana. Que, é fundamental lembrar, são espaços de sociabilidades e territórios existenciais – em sua grande maioria – do povo negro, dos pobres, periféricos, suburbanos e minorias de todo tipo. Assim, aliados ao que há de mais reacionário nas vertentes “evangélicas”, veganos e vegetarianos parecem não desconfiar, por um segundo, que o mar de boas intenções em proteger os animais possa estar completamente envenenado. E as razões são de várias ordens, falaremos de três: a primeira delas é que se trata de um ato extremamente vergonhoso buscar acionar a polícia (através da justiça) para constituir uma nova forma de criminalização de pessoas negras. E, sim, faz diferença essas pessoas serem negras. A vontade de igualar a todas as pessoas pelo “crime” (matar animais) quando na prática só um certo grupo específico (pessoas que fazem parte de religiões de matriz africana) sofre as consequências é só mais um exemplo do racismo à brasileira: aquele que diz não ver cor, mas que cisma em prender, ferir e matar pessoas negras. Se para os veganos e vegetarianos isto é motivo de comemoração, a presença da polícia proibindo e reprimindo as práticas das religiões de matriz africana são, para estas religiões, uma triste atualização, infelizmente sempre e diversificadamente presente, de uma história de repressão. Nesse momento parece que há uma modificação na velha e batida fórmula utilizada na divulgação dos direitos animais: ESPECISMO=RACISMO; para: ANTI-ESPECISTA=RACISTA.

Depois, mais especificamente, o sacrifício animal não pode e nem deve ser comparado ao modo como nossa sociedade trata os animais. Assim, “colocar nas costas” das religiões de matriz africana o peso da “crueldade” com os animais é um absurdo e só mostra a pobreza da política vegetariana e vegana em pensar as complexidades das relações entre humanos e não-humanos. Por sermos pessoas veganas, nós que escrevemos esse manifesto, não acreditamos que “tudo vale” na relação entre humanos e animais não-humanos, não apoiamos, por exemplo, a vivissecção, a indústria da carne e a caça esportiva, e quando se trata da política entre humanos, não apoiamos quando um certo grupo humano majoritário (branco e de classe média/alta – mesmo quando por vezes não se seja branco e de classe média/alta) diz-se portador da verdade e da moral e busca oprimir, mais uma vez, uma minoria. Tudo é política, e é fácil demais autonomizar do restante do campo político, e tornar principal e universal, uma fração escolhida por você; a vida é mais complexa do que isso.

Por fim, trata-se de pensar que o ato de ser vegano e vegetariano, talvez, precise estar atrelado a um processo de singularização. Nem universal, nem meramente particular/individual. Dito em outras palavras, não se trata de uma posição universalizável, que caiba a todas as pessoas em todos os lugares e a todo momento (e a todo custo!). E que, também, é necessário criar novas práticas de conexões (sem perder e, justamente, com a heterogeneidade) com grupos que também resistem e se singularizam, como as religiões de matriz africana. Caso se deseje fazer o veganismo e do vegetarianismo algo maior do que um novo estilo de consumo ou de boa consciência. E caso se deseje também, é claro, um mundo menos vergonhoso como este.

Como não se tornar racista e reacionário mesmo quando e, sobretudo quando, acredita-se ser um vegano ou vegetariano revolucionário? É essa toda a questão. Uma possível resposta: talvez seja encarando o veganismo e o vegetarianismo como práticas de resistências sempre locais e contextualizadas, não descolando tal luta de outras que lhes são transversais. O ponto principal não é a coerência, mas o relacional e contextual. Se há uma ecologia ambiental, da qual os direitos dos animais e a defesa da natureza fazem parte e são importantes, há também, e de suma importância, uma ecologia social, da qual as questões étnicas, raciais e econômicas, por exemplo, também são determinantes. E, não menos importante, há ainda uma ecologia mental ou subjetiva, ou seja, é preciso cuidar, analisar e estar sempre atento a este desejo fascista que fala através de nós, que mobilizam os nossos medos, nossos discursos e ações, que universalizam com sangue modos de vida e que não reconhecem diferenças como diferenças. Para esta última ecologia, a questão primordial a ser posta para os veganos e vegetarianos, tendo em vista o que se passa hoje, não pode ser outra senão esta: como não se tornar racista e reacionário mesmo quando e, sobretudo quando, acredita-se ser um vegano ou vegetariano revolucionário?