Uma derrota é preferível à outra

Não somos a favor da democracia, entre outras razões porque, cedo ou tarde, ela conduz à guerra e à ditadura; também não somos pela ditadura, entre outras razões porque a ditadura faz desejar a democracia, provoca seu retorno e tende assim a perpetuar esta oscilação da sociedade humana entre uma franca e brutal tirania e uma pretensa liberdade, falsa e mentirosa. Está posta aí a dialética sem síntese entre democracia e ditadura. No entanto, é necessário uma certa prudência para não nos deixarmos levar por aqueles descuidados que dizem “no final, democracia, ditadura, direita, esquerda, é tudo igual”. Para nós não há dúvidas de que a pior das democracias é sempre preferível à melhor das ditaduras, a democracia – o pretenso governo do povo – é uma mentira, mas a mentira acorrenta sempre um pouco o mentiroso e limita seu bel-prazer. Há uma mudança de perspectiva em relação ao funcionamento da mentira: já não se trata do modo segundo o qual ela permite o domínio de uma classe sobre a outra, mas sim como “um povo” pode abrir certas brechas em um regime e, assim, ganhar mais liberdade e felicidade, mesmo que brevemente. A questão a ser colocada em relação à mentira de um “governo do povo” é: ela consegue limitar o poder dos que governam?

Tais considerações sobre democracia, ditadura e mentira  parecem importantes para analisarmos a situação que nos encontramos: um jogo cujo término parece ser, de qualquer maneira, a derrota. Mas tratam-se de derrotas diferentes.

De um lado, nos mantemos na mentira de um “governo do povo”, com o PT, mas sabemos que tal mentira fez com que certas brechas fossem abertas nas universidades e na economia. Independente dos efeitos negativos do bolsa família – principalmente nos modos de vida ditos nativos e tradicionais – sabe-se que passar a não viver na miséria completa imposta pelo capitalismo, e contraditoriamente, poder dele participar, mesmo que minimamente, foi algo importante para muitas pessoas. Sabe-se que, mesmo considerando o esmagamento subjetivo produzido pela educação formal, o fato de pessoas dela sempre excluídas, como a população negra, passar a entrar na universidade como estudante, como pesquisadora e como professora, produz um efeito de metamorfose também nesse ambiente marcado pelo elitismo e pelo exotismo em relação ao outro. E, principalmente, produz consequências na vida dessas pessoas marcadas, até pouco tempo a ferro e fogo, para um destino de marginalidade. A mentira de um “governo do povo” tem efeitos sobre esse próprio governo, acorrenta-o impedindo, ou dificultando, sua aproximação em relação à tirania.

De outro lado, tem-se a vontade de verdade. O discurso de ódio sem mais disfarces. “A verdade é que somos machistas, somos racistas, somos classistas, somos homofóbicos, transfóbicos e foda-se… mas falamos a verdade”. A vontade de verdade mostra sua face enganadora. O desprezo aberto pelo povo, que é sinônimo de apreço pela tirania, apresenta-se como virtude. E vê-se, já, suas consequências: espancamentos e mortes ritmadas pelos gritos que clamam um candidato.

 

Não nos enganemos: as minorias sempre estiveram na mira do Estado. A continuidade do genocídio da população negra por parte dos agentes de Estado, ou de outros grupos que espelham o poder do Estado, como o tráfico de drogas – sobretudo o atacadista, já que usa como escudo os corpos de seus funcionários provenientes das classes mais pobres e com a cor mais escura – e as milícias, é o dado mais evidente disso. Mas, como dito, a mentira acorrenta o poder. Ações afirmativas, tipificação de ações discriminatórias como crime, serviços especializados, ou mais atentos às singularidades, no sistema único de saúde não são dados a serem desprezados. São fissuras, frutos da pressão dessas existências diversas, dessa multiplicidade sobre o Estado, Uno por natureza. Tais fissuras são frutos da ação criativa das minorias. O fascismo  reemergente é uma mera reação, já que é incapaz de criatividade. É apenas uma reação de autoconservação. Por isso o fascismo é mortífero, por definição é contrário à própria vida, em si criativa e heterogênica. Tais mortes e espancamentos tornam explícito que se trata de fascismo, tornam evidente do que se trata o fascismo. E fazem ver mais: vê-se a capilaridade de um Estado livre de suas correntes. Não se lida mais com o monopólio da violência. A agência da violência passa a ser distribuída pelo Estado entre todos os entusiastas, todos os fãs deste que se ergue como ídolo. Todos esses seguidores passam a ser policiais da família patriarcal, da propriedade privada hereditária e distribuída racialmente, policiais da tradição, que cabe dizer, é a tradição de uma classe, de um gênero e de uma cor. Todos esses fãs medíocres passam a ser agentes soberanos de um Estado de merda. Isso não é algo que possa ser indiferente. Nesse jogo cujo fim são duas derrotas, uma derrota ainda é preferível à outra.

Já fizemos ressoar os gritos de outra revolução: o voto não muda nada, a luta continua. Um grito que ainda nos move. Talvez deva se fazer uma ressalva, mantendo tal grito em mente: o voto, agora, pode impedir que se mude em direção à legitimação e, necessariamente, à multiplicação da violência em nome do Estado, do esmagamento das diferenças em nome da Nação. E, como se disse, caso haja vitória do PT, continuaremos a entoar: o voto não muda nada, a luta continua. Não há moral do voto nulo que nos impeça de dizer: sim, é preferível um governo mentiroso do que um abertamente fascista. Nós, que somos muitas e muitos, dizemos, gritamos: “Ele não”. A negativa é importante. Não dizemos “sim” a nenhum pretendente ao poder. Se votamos em um candidato estamos dizendo “não” ao fascismo, não “sim” a essa democracia. Ainda lutamos contra a democracia representativa, continuaremos lutando, mesmo que nos digam que uma vida igualitária e justa seja impossível. Entoamos outro canto: sejam realistas, exijam o impossível. Exigimos o impossível. Essa exigência é nosso motor. Assim, se talvez não consigamos pôr fim à existência do governo, contudo, podemos impedir que ele se torne forte e tirânico. Poderemos obrigá-lo a respeitar para nós, e para aqueles que se uniriam a nós, o máximo de liberdade possível […] Em todo o caso, mesmo vencidos, daremos um exemplo fecundo, cujos os resultados serão concretos num futuro próximo. Mesmo vencidos e vencidas agora, o futuro será herança de nossas lutas, assim como essas são heranças das que se deram antes de nós. O futuro é nosso.