Sobre veganismo, sacrifícios e racismo

Há muito a ser dito. Não nos estenderemos. E começaremos pelo que já foi dito.

Certa vez, um vegano conseguiu pronunciar o seguinte enunciado: “se eu visse um índio indo pescar, eu certamente me intrometeria e ensinaria que ele estava errado, dizendo que não se pode tratar os animais desta forma”. Em outra ocasião, no decorrer de uma manifestação pelos direitos dos animais, ao passar em frente um trabalhador que vendia cachorro-quente, uma vegana propos que a barraquinha do vendedor de cachorro-quente fosse destruída.

Longe de se tratar de algo individual, estes enunciados expressam com precisão uma força autoritária, reacionária e muitas das vezes fascistas que atravessam demasiadamente os movimentos (individuais e grupais) de vegetarianos e veganos. Mas por que? Uma militante do coletivo anarquista Crimethinc esboçou uma resposta: “Existem muitas pessoas reacionárias e mesmo fascistas que abandonaram outras lutas e se tornaram veganas e vegetarianas e começaram por lutar, apenas e contundentemente, pelos direitos dos animais. A razão disso? Essas pessoas tem poderes absolutos de representação dos seres (os animais) pelos quais, a princípio, elas lutam. Tal fato se dá pela dificuldade que os animais encontram em questionar seus auto-eleitos representantes”.

Ora, nesse exato momento, mais uma vez, retorna um refrão entoado frequentemente por veganos e vegetarianos que reforçam inteiramente o etnocídio do primeiro caso, o elitismo e o espírito de playboy do segundo caso e as razões políticas reacionárias e fascistas sabiamente explicitadas neste terceiro caso: a atual campanha de boicote, perseguição e destruição das religiões de matriz africana através da condenação e criminalização, especificamente, das práticas de sacrifício animal.

Nesse último caso, os etnocídios, o elitismo e o espírito de playboy bem como as bases políticas reacionárias se intercalam e se revezam com uma poderosa ação racista e classista. Trata-se de fazer coro à uma destruição e perseguição sistemática, de tempos, às religiões de matriz africana. Que, é fundamental lembrar, são espaços de sociabilidades e territórios existenciais – em sua grande maioria – do povo negro, dos pobres, periféricos, suburbanos e minorias de todo tipo. Assim, aliados ao que há de mais reacionário nas vertentes “evangélicas”, veganos e vegetarianos parecem não desconfiar, por um segundo, que o mar de boas intenções em proteger os animais possa estar completamente envenenado. E as razões são de várias ordens, falaremos de três: a primeira delas é que se trata de um ato extremamente vergonhoso buscar acionar a polícia (através da justiça) para constituir uma nova forma de criminalização de pessoas negras. E, sim, faz diferença essas pessoas serem negras. A vontade de igualar a todas as pessoas pelo “crime” (matar animais) quando na prática só um certo grupo específico (pessoas que fazem parte de religiões de matriz africana) sofre as consequências é só mais um exemplo do racismo à brasileira: aquele que diz não ver cor, mas que cisma em prender, ferir e matar pessoas negras. Se para os veganos e vegetarianos isto é motivo de comemoração, a presença da polícia proibindo e reprimindo as práticas das religiões de matriz africana são, para estas religiões, uma triste atualização, infelizmente sempre e diversificadamente presente, de uma história de repressão. Nesse momento parece que há uma modificação na velha e batida fórmula utilizada na divulgação dos direitos animais: ESPECISMO=RACISMO; para: ANTI-ESPECISTA=RACISTA.

Depois, mais especificamente, o sacrifício animal não pode e nem deve ser comparado ao modo como nossa sociedade trata os animais. Assim, “colocar nas costas” das religiões de matriz africana o peso da “crueldade” com os animais é um absurdo e só mostra a pobreza da política vegetariana e vegana em pensar as complexidades das relações entre humanos e não-humanos. Por sermos pessoas veganas, nós que escrevemos esse manifesto, não acreditamos que “tudo vale” na relação entre humanos e animais não-humanos, não apoiamos, por exemplo, a vivissecção, a indústria da carne e a caça esportiva, e quando se trata da política entre humanos, não apoiamos quando um certo grupo humano majoritário (branco e de classe média/alta – mesmo quando por vezes não se seja branco e de classe média/alta) diz-se portador da verdade e da moral e busca oprimir, mais uma vez, uma minoria. Tudo é política, e é fácil demais autonomizar do restante do campo político, e tornar principal e universal, uma fração escolhida por você; a vida é mais complexa do que isso.

Por fim, trata-se de pensar que o ato de ser vegano e vegetariano, talvez, precise estar atrelado a um processo de singularização. Nem universal, nem meramente particular/individual. Dito em outras palavras, não se trata de uma posição universalizável, que caiba a todas as pessoas em todos os lugares e a todo momento (e a todo custo!). E que, também, é necessário criar novas práticas de conexões (sem perder e, justamente, com a heterogeneidade) com grupos que também resistem e se singularizam, como as religiões de matriz africana. Caso se deseje fazer o veganismo e do vegetarianismo algo maior do que um novo estilo de consumo ou de boa consciência. E caso se deseje também, é claro, um mundo menos vergonhoso como este.

Como não se tornar racista e reacionário mesmo quando e, sobretudo quando, acredita-se ser um vegano ou vegetariano revolucionário? É essa toda a questão. Uma possível resposta: talvez seja encarando o veganismo e o vegetarianismo como práticas de resistências sempre locais e contextualizadas, não descolando tal luta de outras que lhes são transversais. O ponto principal não é a coerência, mas o relacional e contextual. Se há uma ecologia ambiental, da qual os direitos dos animais e a defesa da natureza fazem parte e são importantes, há também, e de suma importância, uma ecologia social, da qual as questões étnicas, raciais e econômicas, por exemplo, também são determinantes. E, não menos importante, há ainda uma ecologia mental ou subjetiva, ou seja, é preciso cuidar, analisar e estar sempre atento a este desejo fascista que fala através de nós, que mobilizam os nossos medos, nossos discursos e ações, que universalizam com sangue modos de vida e que não reconhecem diferenças como diferenças. Para esta última ecologia, a questão primordial a ser posta para os veganos e vegetarianos, tendo em vista o que se passa hoje, não pode ser outra senão esta: como não se tornar racista e reacionário mesmo quando e, sobretudo quando, acredita-se ser um vegano ou vegetariano revolucionário?